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STJ analisa acesso a bens digitais no inventário e nomeação de “inventariante digital”; entenda
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O acesso a bens digitais durante o processo de inventário ganhou destaque recentemente no Superior Tribunal de Justiça – STJ, quando a Terceira Turma começou a analisar um pedido de autorização judicial para uma inventariante acessar o computador de uma mulher já falecida. A relatora, ministra Nancy Andrighi, apresentou seu voto, mas a análise foi suspensa após pedido de vista do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva.
A questão teve origem em um caso marcado pela morte simultânea de seis membros de uma mesma família – marido, esposa, filhos e respectivos cônjuges – em um acidente aéreo.
Ao analisar o caso, Nancy Andrighi destacou que o tema é inédito no Direito brasileiro e carece de regulamentação específica. Segundo a ministra, a inventariante pediu acesso ao computador a fim de identificar bens de valor econômico ou afetivo.
Direito da personalidade
A relatora alertou que a abertura irrestrita do dispositivo pode expor informações íntimas e intransmissíveis, protegidas pelo direito da personalidade, como registros de relacionamentos privados.
Ela propôs, então, a criação de um incidente processual de identificação de bens digitais, com nomeação de um “inventariante digital”, profissional habilitado para acessar o equipamento, manter sigilo e listar o conteúdo encontrado.
Segundo a ministra, o juiz, com base nessa listagem, decide quais bens são transmissíveis e quais devem ser preservados. Segundo a ministra, essa classificação é ato jurisdicional indelegável.
Nancy Andrighi também defendeu que o “inventariante digital” possa administrar temporariamente alguns bens até o fim do inventário, ressaltando que a falta de lei específica tem levado à perda de patrimônio digital no país. Ela votou por dar parcial provimento ao recurso, determinando o retorno do processo ao 1º grau para seguir o procedimento sugerido.
Reflexos no futuro
Diante da suspensão do julgamento, o vice-presidente da Comissão Nacional de Tecnologia do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, advogado e professor Marcos Ehrhardt Jr. comenta quais reflexos a decisão futura pode ter sobre o tratamento dos bens digitais em inventários no Brasil.
“O papel do STJ é unificar a aplicação do Direito federal infraconstitucional em nosso país. Logo, um precedente que apresente uma solução para questões que ainda carecem de regulamentação contribui para conferir maior visibilidade ao assunto, fomentar o debate acadêmico e profissional sobre o tema e ainda ajuda a conferir um pouco mais de previsibilidade para futuras decisões judiciais relacionadas ao assunto”, observa.
Ele destaca que o Judiciário deve oferecer soluções para casos concretos, mesmo na ausência de leis específicas sobre o tema. “A velocidade das transformações nas relações privadas decorrentes de novas tecnologias tem sido um fator preponderante na dificuldade de os órgãos legislativos apresentarem regulação tempestiva, suficiente e adequada para esta nova realidade”, avalia.
“Inventariante digital”
Ele destaca que a principal particularidade do caso analisado pelo STJ é o fato de o pedido de acesso aos bens digitais ter sido feito durante o inventário. Por isso, a ministra Nancy Andrighi sugeriu a inclusão do “inventariante digital”, cuja função é distinta do inventariante tradicional.
“Pode-se entender a figura do ‘inventariante digital’ como um auxiliar eventual da Justiça, que se equipara a um perito nomeado ad hoc pelo magistrado. Isto é, ele não ocupa cargo na administração da Justiça e atua por conta de seu conhecimento técnico ou científico. Sua nomeação encontra fundamento no disposto nos arts. 156 e 464 do Código de Processo Civil – CPC e não deve ser confundida com a figura do inventariante tradicional, que segue preservada”, pontua.
Segundo ele, o “inventariante digital” deve ser nomeado quando o juiz considerar necessário contar com conhecimento especializado para identificar ativos digitais passíveis de transmissão aos herdeiros e avaliar seu valor, com objetivo de evitar uma partilha desigual.
“Uma vez nomeado, o ‘inventariante digital’ deverá observar o dever de confidencialidade em relação aos bens a que tiver acesso, sendo passível de responsabilização civil e criminal em razão da violação de seu múnus no CPC”, afirma.
Segredo de Justiça
Marcos Ehrhardt Jr. acrescenta que, caso existam bens digitais de natureza pessoal, os autos do processo devem tramitar em segredo de Justiça para proteger os direitos da personalidade do falecido ou de terceiros.
“Sou favorável à designação de tal auxiliar, quando o caso concreto assim o exigir, atento à consideração de que é preciso que o Poder Judiciário assegure eficiência na prestação jurisdicional, com estrita observância ao ecossistema regulatório atualmente em vigor, em especial a Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD”, pondera.
Ele esclarece ainda que a classificação dos bens digitais é controversa, já que as propostas legislativas para regulamentação do tema ainda estão em tramitação. Os bens digitais existenciais, segundo ele, são aqueles ligados à esfera íntima e pessoal, ou seja, direitos da personalidade exercidos em ambiente eletrônico, como a imagem e conversas privadas.
“Alguns bens digitais não se enquadram exclusivamente como patrimoniais ou existenciais, especialmente quando são divulgados com fins econômicos. Nesses casos, pode ser necessário recorrer ao Judiciário para definir quais ativos podem ser transmitidos causa mortis”, pontua.
REsp 2.124.424
Por Guilherme Gomes
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